No decurso de uma operação de zapping, condicionada pelo contraste entre o Mezzo e a pobreza de outros canais, fui ter à RTP-2, bem no início do Playtime, a Vida Moderna de Jacques Tati. Foi uma imensa alegria retomar o contacto com a aparente leveza e o humor espantosamente conseguido neste grande filme. Que reflecte a reacção a novos estereótipos da arquitectura, do design e das funcionalidades, ao diletantismo e espavento de uma classe média com estatuto ascensional, a que atribuíamos – também então! – um carácter moderno, com o que isso tem de apelo à alienação ou ao consumismo e às falsas necessidades que geraram as bolhas que rebentariam mais de trinta anos depois.
Mr. Hulot é o alter-ego de Tati, a ponto de confundirmos a personagem com o seu criador que captou como poucos os pequenos momentos e reacções do quotidiano de uma sociedade. Sociedade em transformação de representações e de valores, revelando os confrontos com a simplicidade do ser de uma ganga contra a qual ele nunca se manifestou civicamente, ao ponto de, para alguns, se deixar confundir com um personagem deslocado no tempo e no espaço, um D. Quixote que não investe sobre os moinhos. Porém, ele é, na verdade, um flaneur de Baudelaire dos tempos modernos. Um flaneur que nos desafia a ver coisas que, de banais, não nos chamam a atenção. Atitude, aliás, muito conseguida com o perfil subtil que paira nas situações de uma forma esguia, ela própria rejeitando um estereótipo de elegância que surpreende e onde a gabardina, o cachimbo, o chapéu, o guarda-chuva e as calças curtas se tornaram adereços identitários, como existiram já nas Férias do Sr. Hulot (1953) no Meu tio (1958), e depois dos que nos trouxe, como carteiro, no Carrossel da Esperança (Jour de Fête, 1949), a sua primeira longa-metragem.
Em Hulot, e especialmente neste filme, o humor, os gestos humanos, o desassombramento perante as dificuldades, estimularam uma combatividade esclarecida que não renegou a cultura nesta época. Filmado sem um close-up e com cenas que não se esgotam apenas num tema nem na personagem principal, é uma tarefa complexa da mise-en-scène, e remete Paris eterna para simples imagens nas vidraças, onde os prédios novos indefinidos são palco de circulação de turistas americanos a quem resta captar imagens de uma resistente florista de esquina das avenues que deixaram de ser boulevards.
O restauro deste filme que esteve em risco de se perder pela degradação dos negativos originais, permitiu um reencontro com o público, depois do impacto da sua estreia original, injustamente condicionado, em termos de crítica, pela sua realização cara e acidentada.
Jacques Tati já era um realizador reconhecido e premiado, particularmente depois do Meu tio, no final dos anos cinquenta quando desenvolveu o projecto do Playtime, claramente exorbitante nos recursos, não se tratando de um filme norte-americano. Eram os anos sessenta, a França disputava aos EUA uma influência cultural imbatível em termos de mercado, e o desejo de afirmação francesa era muito forte. Alguns chamaram ao projecto megalómano (a área dos cenários era enorme e ficou conhecida por Tativille) e os incidentes no decurso da produção, em termos de pesados encargos e mesmo atmosféricos, geraram nos meios culturais fortes reacções e antipatias que viriam a refrear entusiasmos quando da sua estreia em 1967. Como alguém disse, Playtime "foi a obra-prima que arruinou o seu autor". Ainda realizou e produziu outro filme, Trafic (1970), que apesar de ter sido um êxito de bilheteira não impediu a ruína que obrigou Tati a vender os seus negativos.
Felizmente, o filme sobreviveu e é um das melhores obras cinematográficas do século passado, que mantém grande actualidade.
Sobre a sua vida e obra consultar
http://www.tativille.com/
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Há 4 semanas
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