A esquerda e o poder? Claro que sim…
As opiniões que avanço sobre as questões colocadas têm, naturalmente, em linha de conta que não há uma esquerda e, quando muito, existirão várias, o que necessariamente implica visões e práticas diferentes.
O exercício do poder e a relação com o ser-se de esquerda ocorre também noutras instâncias que não apenas nos órgãos de poder político. Exerce-se nos partidos, nas associações e noutras situações, por eleição dos membros que os constituem, com mandato outorgado, de forma mais ou menos explícita e por um determinado período. Para já não falar nas empresas e outros organismos públicos. Também nestas circunstâncias não é indiferente ser-se ou não “de esquerda” quer pelo programa de acção adoptado quer pelo estilo do desempenho.
Por isso mesmo, face a práticas concretas, contraditórias com a reclamação “de esquerda”, muitos dirão que “eles são todos iguais” ou, para outros supostamente mais nutridos intelectualmente, “já não há diferenças entre direita e esquerda”, generalizando – até por conveniência auto-justificativa de comportamentos próprios – o que não é generalizável.
Traços distintivos “de esquerda”
Ao contrário do que alguns trinados nos sugerem, existem traços distintivos de direita e esquerda.
Sem pretensões a ser exaustivo, e desde logo, ao nível dos ideais e paradigmas. Da não identificação das utopias com “fantasias de juventude”. Da percepção da realidade de um perspectiva que pressupõe uma adesão aos interesses de uma ou várias classes mas não de todas porque são entre si contraditórios. Do papel primordial que enformam a perspectiva de que o homem e as suas condições de vida ocupam como centro da actividade económica. Das opções relativas ao destino e redistribuição da riqueza produzida e da assimetria de rendimentos. Da garantia do trabalho e da remuneração progressivamente mais justa. Da aceitação ou não de serem o trabalho e a actividade económica e não a financiarização e a actividade especulativa as bases sólidas do desenvolvimento. Da relação não exclusiva entre desenvolvimento e crescimento económico. Da relação entre os direitos da comunidade ou dos trabalhadores com o direito de propriedade e dos limites deste particularmente nos casos de conflito de interesses. Da aceitação ou não que a concentração e centralização do capital afectem, pelas regras que imponham ao mercado, a extensão da malha empresarial e o direito ao trabalho. Da existência de vertentes sociais e culturais da democracia para além das vertentes políticas e económicas. De que a democracia representativa não esgota a democracia política, que inclui também a democracia participativa, de forma permanente, mais ou menos organizada, e a democracia directa, ambas de importância crescente na actualidade quando os mandatos da democracia representativa são, em geral, cada vez mais afastados das promessas, do rigor e da honestidade. De não condicionar a liberdade de criação e fruição artísticas pela “sustentabilidade” imposta pelos interesses privados e não pelo interesse público de garantir direitos culturais. Do não beneficiar do exercício das funções públicas para fins pessoais quer ao nível da incompatibilidade de interesses, quer ao nível remuneratório e de novos direitos e regalias. De encarar a autoridade como algo em relação ao qual se procura a aceitação consentida, pela justeza das medidas e pelo comportamento de quem dirige e não por assumir carácter coercivo. De estar atento e impedir derivas securitárias, abusos de poder, distorces ao equilíbrio e interdependência dos órgãos de poder. De aceitar, como natural, que, sem perda da autoridade, cada um pode contribuir para melhorar o conteúdo de uma decisão ou assumir, com naturalidade, uma capacidade crítica e autocrítica, reconhecer e explicitar os erros e dispor-se a contribuir para os ultrapassar. De recusar o show-off, o teleponto, os olhares de vivacidade anémica, a pose, em benefício da verdade, dos olhos-nos-olhos, da convicção que resulta naturalmente, e sem necessidade de muletas, da opção de falar verdade. Do respeito pelo trabalho colectivo ou do de muitos que estão por detrás dos falsos "desarrincanços" de virtude e origem pessoais. Da aceitação natural que o toque inovador de cada um, em geral, só é útil se prosseguir muita coisa boa que vem de trás e do trabalho dos que nos antecederam. Da apresentação clara e não manipulada de resultados, muitas vezes descontextualizados, sem comparabilidades retrospectivas honestamente fundadas.
Se me estendi neste enunciado, fi-lo com o propósito de evidenciar que o ser de esquerda, mais do que a reclamação de tal estado, é um complexo de respeitos por todas essas referências e mais algumas que se poderiam aqui enunciar. Não por serem secundárias ou para cumprir “assim, assim” mas num permanente esforço de coerência. (continua)
As opiniões que avanço sobre as questões colocadas têm, naturalmente, em linha de conta que não há uma esquerda e, quando muito, existirão várias, o que necessariamente implica visões e práticas diferentes.
O exercício do poder e a relação com o ser-se de esquerda ocorre também noutras instâncias que não apenas nos órgãos de poder político. Exerce-se nos partidos, nas associações e noutras situações, por eleição dos membros que os constituem, com mandato outorgado, de forma mais ou menos explícita e por um determinado período. Para já não falar nas empresas e outros organismos públicos. Também nestas circunstâncias não é indiferente ser-se ou não “de esquerda” quer pelo programa de acção adoptado quer pelo estilo do desempenho.
Por isso mesmo, face a práticas concretas, contraditórias com a reclamação “de esquerda”, muitos dirão que “eles são todos iguais” ou, para outros supostamente mais nutridos intelectualmente, “já não há diferenças entre direita e esquerda”, generalizando – até por conveniência auto-justificativa de comportamentos próprios – o que não é generalizável.
Traços distintivos “de esquerda”
Ao contrário do que alguns trinados nos sugerem, existem traços distintivos de direita e esquerda.
Sem pretensões a ser exaustivo, e desde logo, ao nível dos ideais e paradigmas. Da não identificação das utopias com “fantasias de juventude”. Da percepção da realidade de um perspectiva que pressupõe uma adesão aos interesses de uma ou várias classes mas não de todas porque são entre si contraditórios. Do papel primordial que enformam a perspectiva de que o homem e as suas condições de vida ocupam como centro da actividade económica. Das opções relativas ao destino e redistribuição da riqueza produzida e da assimetria de rendimentos. Da garantia do trabalho e da remuneração progressivamente mais justa. Da aceitação ou não de serem o trabalho e a actividade económica e não a financiarização e a actividade especulativa as bases sólidas do desenvolvimento. Da relação não exclusiva entre desenvolvimento e crescimento económico. Da relação entre os direitos da comunidade ou dos trabalhadores com o direito de propriedade e dos limites deste particularmente nos casos de conflito de interesses. Da aceitação ou não que a concentração e centralização do capital afectem, pelas regras que imponham ao mercado, a extensão da malha empresarial e o direito ao trabalho. Da existência de vertentes sociais e culturais da democracia para além das vertentes políticas e económicas. De que a democracia representativa não esgota a democracia política, que inclui também a democracia participativa, de forma permanente, mais ou menos organizada, e a democracia directa, ambas de importância crescente na actualidade quando os mandatos da democracia representativa são, em geral, cada vez mais afastados das promessas, do rigor e da honestidade. De não condicionar a liberdade de criação e fruição artísticas pela “sustentabilidade” imposta pelos interesses privados e não pelo interesse público de garantir direitos culturais. Do não beneficiar do exercício das funções públicas para fins pessoais quer ao nível da incompatibilidade de interesses, quer ao nível remuneratório e de novos direitos e regalias. De encarar a autoridade como algo em relação ao qual se procura a aceitação consentida, pela justeza das medidas e pelo comportamento de quem dirige e não por assumir carácter coercivo. De estar atento e impedir derivas securitárias, abusos de poder, distorces ao equilíbrio e interdependência dos órgãos de poder. De aceitar, como natural, que, sem perda da autoridade, cada um pode contribuir para melhorar o conteúdo de uma decisão ou assumir, com naturalidade, uma capacidade crítica e autocrítica, reconhecer e explicitar os erros e dispor-se a contribuir para os ultrapassar. De recusar o show-off, o teleponto, os olhares de vivacidade anémica, a pose, em benefício da verdade, dos olhos-nos-olhos, da convicção que resulta naturalmente, e sem necessidade de muletas, da opção de falar verdade. Do respeito pelo trabalho colectivo ou do de muitos que estão por detrás dos falsos "desarrincanços" de virtude e origem pessoais. Da aceitação natural que o toque inovador de cada um, em geral, só é útil se prosseguir muita coisa boa que vem de trás e do trabalho dos que nos antecederam. Da apresentação clara e não manipulada de resultados, muitas vezes descontextualizados, sem comparabilidades retrospectivas honestamente fundadas.
Se me estendi neste enunciado, fi-lo com o propósito de evidenciar que o ser de esquerda, mais do que a reclamação de tal estado, é um complexo de respeitos por todas essas referências e mais algumas que se poderiam aqui enunciar. Não por serem secundárias ou para cumprir “assim, assim” mas num permanente esforço de coerência. (continua)
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