quinta-feira, 26 de março de 2009

Da C&T na Rússia pré-Outubro, por Francisco Silva

Uma convicção que alastrou após a Revolução de Outubro, uma convicção que na prática assim foi querida, e sem lugar a discussão, teria sido o erro ou, no mínimo, o engano de Karl Marx ao afirmar que as primeiras sociedades onde as revoluções socialistas teriam sucesso seriam aquelas onde o capitalismo já fosse uma realidade madura - foi pouco mais ou menos assim que foram rezando muitos intelectuais ditos «marxianos» sobretudo por esse desenvolvido Ocidente fora.

Outro lado pelo qual se olha para esta questão é o da Revolução de Outubro, ao ter acontecido num pais de dominância camponesa - o país dos mujiques, onde o processo de quebrar das relações servis ainda era recente -, ter constituído um erro voluntarístico dos revolucionários russos. Estes, estando a actuar num país atrasado como era a Rússia dos czares, nunca deveriam ter avançado para uma transformação tão radical.

Então, por um lado Marx ter-se-ia enganado ao afirmar que a revolução socialista era só para os mais desenvolvidos de todos - e portanto, em face da Revolução de Outubro, verificava-se que a revolução socialista era para os países atrasados; e quando estes chegassem a um certo grau de desenvolvimento passariam por força para o capitalismo e sua democracia. Por outro lado, como os revolucionários russos avançaram numa sociedade onde não estavam maduras as condições para tal, era por isso que as coisas corriam mal e a União Soviética jamais poderia ser um país desenvolvido, constituir-se como um Estado de Direito, etc.

Ora o facto é que, na Rússia desses tempos, tanto a prática das artes - música, literatura - como a das ciências já possuía um nível elevado. E não se pode desligar estas realidades das outras capacidades societais a diversos níveis. O que faz pensar a questão teórica dos limiares, das alterações qualitativas: ultrapassado o limiar estavam criadas as condições necessárias que Marx referiu para a possibilidade da revolução socialista. Por isso, esta aconteceu na Rússia - não foi voluntarismo dos revolucionários russos nem deslize teórico de Marx.

De um tal ambiente novo destacam-se os casos da Ciência na Rússia anterior à Revolução de Outubro, em particular relativos à Ciência em articulação com aplicações dela afluentes, isto é, os factos que caem no âmbito do que hoje se apelida de Ciência & Tecnologia - C&T. Com efeito, o papel desta tem sido considerado como factor determinante para o desenvolvimento económico e social, de que os EUA e outros países, como o Japão, o Reino Unido, a Alemanha, a França, etc., se constituíram como exemplos não contestados.

Assinalemos então os casos de Ivan Pavlov, Ilya Ilich Mechnikok, Alexander Popov e Konstantin Tsiolkovsky. Outros haveria a citar, seguramente. Os dois primeiros foram laureados com o Prémio Nobel da Fisiologia/Medicina. Pavlov recebeu o Prémio Nobel pelas suas descobertas dos processos digestivos de animais. Pavlov acabou mesmo por entrar, mais do que para a História, para o falar do dia a dia devido à sua investigação sobre o reflexo condicionado. Fala-se do cão de Pavlov, do seu salivar enquanto reflexo condicionado, etc. Mechnikov ficou conhecido pela sua investigação pioneira em imunologia, tendo sido laureado com o Prémio Nobel pelo seu trabalho na área da fagocitose. Popov foi um dos pioneiros da telegrafia sem fios - TSF -, com precedência sobre Guglielmo Marconi, o italiano que foi senador no tempo de Mussolini. Popov começou a realizar experiências no início dos anos 90 do século XIX, na peugada de Heinrich Hertz. Em 1900, a tripulação de um navio guarda-costeiro russo salvou pescadores finlandeses com a ajuda da troca de telegramas entre duas estações rádio. O último dos exemplos referidos é o de Tsiolkovsky. O programa aeroespacial, lançado pela União Soviética foi inspirado, entre outros, por ele, o mais antigo dos «pais» do programa. Tsiolkovski discutia na sua obra teórica «A exploração do espaço cósmico por motores de reacção», publicada em 1903, quais os combustíveis necessários para que um foguetão pudesse dispor da potência suficiente para se libertar da atracção terrestre e atingir outros planetas.

Exemplos, penso que bem relevantes, de que a Rússia que se aproximava de fazer a Revolução de Outubro, sem embargo um enorme país pleno de contrastes, já tinha entrado no ritmo da que progressivamente viria a ser a moderna C&T, que se constituiu no decurso do século XX - digamos assim - como o mais poderoso pilar do moderno desenvolvimento.

(publicado no "Avante!" de hoje)

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