No seu texto "A armadilha do crescente endividamento…", publicado no resistir.info no passado dia 9 , Eugénio Rosa afirma que os defensores da saída do euro "não analisam os efeitos que tal opção terá para o país e para os portugueses, com o rigor, profundidade e abrangência necessária" e que"tal omissão só tem facilitado a manipulação da opinião pública pelo governo e pela direita que dizem que a saída será uma catástrofe". Como sou um dos tais defensores da saída do euro, isso suscita-me algumas considerações. Por um lado porque tenho plena consciência das implicações (com rigor e com abrangência) da saída do euro e, por outro lado, me recuso a passar por fazer o jogo do governo e da sua política de desastre. Vamos por partes.
1. Julgo não haver dúvidas por parte de ninguém, pelo menos à esquerda, que os problemas nodais do país (em termos económicos com as correspondentes decorrências financeiras e socias) são o elevado endividamento externo e o permanente défice externo que o gera e alimenta.
Daqui decorre que o que é central e essencial é a redução e tendencial eliminação, de forma sustentada, do défice externo. E só há uma maneira de o fazer: reduzir importações e aumentar exportações. Só possível com o aumento da produção, com o aumento da criação de valor. Mas o objectivo da criação de mais valor, para além de não se conseguir por decreto, não chega. É preciso realizar esse valor criado. Isto é, produzir mais para acumular "stocks" não resolve qualquer problema. É preciso vender essa produção, seja no mercado interno seja no externo.
Como julgo que ninguém defende a implementação de um sistema económico autárcico (o que para além do mais seria impossível concretizar) é necessário que a produção seja competitiva em termos de preços.
Essa competitividade pelos preços só é possível, nas condições concretas da economia portuguesa, com uma desvalorização cambial ou com a desvalorização interna que a troika e o governo estão a fazer. [1] Ou seja, pode dizer-se que quem se mantém agarrado à permanência no euro objectivamente está a optar pela desvalorização interna e, logo, a dar razão às troikas externa e interna.
2. Como já o referi diversas vezes, no meu entender a melhor solução para o país (e não só) seria a do euro deixar de ser uma moeda única e passar a ser uma moeda comum e de reserva em relação à qual as moedas nacionais seriam convertíveis na base de uma taxa fixa ajustável regularmente de acordo com a evolução dos saldos correntes externos estruturais. Só essa moeda comum seria convertível para moedas fora da zona euro. E isso não impediria que alguns países, economicamente mais homogéneos, pudessem manter o euro como moeda única. [2]
Mas não estando isso nas nossas mãos e não parecendo possível face à oposição, em particular, da Alemanha, a questão da saída da zona euro coloca-se com acuidade crescente.
Porque não é sequer pensável que o país possa sobreviver com uma moeda permanentemente sobrevalorizada em 30% ou mais relativamente ao que é a taxa de equilíbrio adequada à economia portuguesa, como tem sucedido nos últimos 10 anos.
Mas essa saída continua a ser largamente recusada por muitos, à direita como à esquerda, com argumentos assentes na amplitude da dívida, na estabilidade financeira e na crença de um forte recrudescimento da inflação.
Estes problemas são reais, mas não são insolúveis.
Os problemas: a) a saída do euro necessariamente acompanhada de uma desvalorização importante implicará uma pressão inflacionista e apresentará o risco de ver a nova moeda apanhada no turbilhão da especulação; b) o das dívidas liberadas em euro; c) a obtenção do financiamento externo que seja necessário.
As vias de solução:
a) Em relação à inflação importada, calculada com rigor, uma desvalorização de 30% significará uma inflação, directa e indirecta, da ordem dos 8 a 9%. [3] Perfeitamente controlável porque transitória e porque os seus efeitos sobre os rendimentos dos trabalhadores podem ser eliminados ou fortemente reduzidos. Se nada for feito nesse sentido a inflação será de 8/9% e o aumento de competitividade pelos preços será de 22/21%. Se se fizerem, no limite, actualizações salariais de 8/9%, o aumento de competitividade pelos preços seria da ordem dos 20/19%. Ora, este ganho de competitividade pura e simplesmente não é possível através da desvalorização interna. Nem com o governo de Passos Coelho. [4] E a pressão sobre a inflação interna é controlável, controlando basicamente o sistema da grande distribuição, o que é facilitado por ser um sistema com relativamente poucos agentes.
Quanto ao risco da nova moeda ser sujeita à especulação é evidente que necessariamente terá de ser introduzido um controlo de capitais para evitar fugas e especulação. [5]
b) o problema das dívidas liberadas em euros, e apenas as que são detidas por não residentes, coloca-se apenas em relação ao Estado e a algumas grandes empresas, não afectando a generalidade das pequenas e médias empresas e dos cidadãos.
Para além disso, a questão coloca-se em relação à divida externa líquida e não à divida bruta. Ou seja, estamos a falar em cerca 188 mil milhões (que é muito) e não em 385. [6]
No que respeita à dívida pública, deverá registar-se uma baixa do valor de revenda no mercado secundário. E assim será possível recomprar uma parte substancial da dívida, o que deixará nas mãos dos não residentes relativamente pouco e essa dívida residual correspondente à desvalorização será relativamente negligenciável. No que respeita ao endividamento externo das grandes empresas, é muito provável que seja necessário, durante um período transitório, que o poder público conceda empréstimos a algumas dessas empresas. E não deve ser arredada a hipótese de o Estado poder intervir, ou mesmo nacionalizar, algumas dessas empresas, nomeadamente bancos.
Num caso como noutro, como? Através do Banco de Portugal que entretanto, convém não olvidar, recuperou a sua soberania monetária. [7]
c) Quanto ao risco do financiamento externo importa ter presente que as novas necessidades de financiamento se reduzem significativamente; que os financiadores externos necessariamente terão em conta o aumento do crescimento económico e, portanto, o aumento da capacidade do País cumprir as suas obrigações externas; que experiências recentes de outros países mostram que o fluxo de financiamento externo se restabelece num prazo curto; e que é possível proceder à reestruturação pelo menos da dívida pública; que poderá ser possível recorrer a financiadores externos não tradicionais.
Se por parte dos defensores da manutenção de Portugal na zona euro isto for considerado utópico, ou uma confusão entre desejos e realidades, então forçoso seria concluir que estariam a dar plena razão ao governo quando nos diz que ou há financiamento da troika externa ou é o caos. E que como só a troika nos empresta, em regime de monopólio, necessariamente temos de cumprir todas as suas exigências, todos os seus memorandos…
3. Finalmente, é necessário compreender que a saída do euro sendo necessária não é suficiente, não é um fim em si mesma. (Embora já fosse significativa, para quem se posiciona à esquerda, porque o euro actual é instrumento essencial do projecto neoliberal em que estamos enterrados e onde não há uma perspectiva de progresso social.) A saída do euro e a criação da nova moeda tem de inserir-se, e dela é instrumento essencial, numa alteração da política macroeconómica. Só assim ela terá os efeitos pretendidos pelos que, com abrangência, defendem a saída do euro e a recuperação da soberania monetária.
Esta perspectiva, que sustenta a possibilidade e dá credibilidade e coerência à saída do euro, parece esquecida pelos muitos que à esquerda continuam a rejeitá-la mas sem apresentarem uma alternativa global credível e coerente.
14/Janeiro/2013
Notas
1. A via do aumento da produtividade de todos os factores de produção não é neste momento alternativa, porque está nas mãos dos empresários portugueses que nunca o quiseram ou souberam fazer e porque isso será tarefa para 10 ou 20 anos.
2. Como foi proposto, entre outros, por Jacques Sapir.
3. Calculado com base nas matrizes input-output para a economia portuguesa. Comparativamente, não se esqueça que a Islândia, com uma desvalorização da ordem dos 50% registou uma inflação de 12%.
4. Não se esqueça que o peso das remunerações (TSU+salários) na produção nacional é de apenas 26% reduzindo-se, na produção mercantil, para 16%.
5 A Islândia fê-lo, sem ter sido impedida ou repudiada por qualquer organização internacional.
6. Dados do Banco de Portugal relativos a Setembro de 2012. Importa, em nome do rigor, não confundir dívida externa com passivo da posição de investimento internacional. Porque, por exemplo, o investimento directo estrangeiro ou o investimento de carteira em acções e participações por não residentes, não são, de forma alguma, dívida externa do país.
7. Aliás, pelo menos contabilisticamente, isso já se estará a passar com a banca. Entre Dezembro de 2009 e Setembro de 2012 a dívida externa da banca reduziu-se contabilisticamente em 77 mil milhões mas a do Banco de Portugal aumentou 47 mil milhões. Pelo menos aparentemente, a dívida dos bancos ao BCE é contabilizada como dívida do Banco de Portugal.
1. A via do aumento da produtividade de todos os factores de produção não é neste momento alternativa, porque está nas mãos dos empresários portugueses que nunca o quiseram ou souberam fazer e porque isso será tarefa para 10 ou 20 anos.
2. Como foi proposto, entre outros, por Jacques Sapir.
3. Calculado com base nas matrizes input-output para a economia portuguesa. Comparativamente, não se esqueça que a Islândia, com uma desvalorização da ordem dos 50% registou uma inflação de 12%.
4. Não se esqueça que o peso das remunerações (TSU+salários) na produção nacional é de apenas 26% reduzindo-se, na produção mercantil, para 16%.
5 A Islândia fê-lo, sem ter sido impedida ou repudiada por qualquer organização internacional.
6. Dados do Banco de Portugal relativos a Setembro de 2012. Importa, em nome do rigor, não confundir dívida externa com passivo da posição de investimento internacional. Porque, por exemplo, o investimento directo estrangeiro ou o investimento de carteira em acções e participações por não residentes, não são, de forma alguma, dívida externa do país.
7. Aliás, pelo menos contabilisticamente, isso já se estará a passar com a banca. Entre Dezembro de 2009 e Setembro de 2012 a dívida externa da banca reduziu-se contabilisticamente em 77 mil milhões mas a do Banco de Portugal aumentou 47 mil milhões. Pelo menos aparentemente, a dívida dos bancos ao BCE é contabilizada como dívida do Banco de Portugal.
Este artigo encontra-se
em http://resistir.info/
Acerca da saída do euro, ver neste
site:
- Os Hamlets portugueses e a saída do Euro , João Carlos Graça
- Acerca dos custos e benefícios da saída do euro , Jorge Figueiredo
- Sair do euro é preciso , Octávio Teixeira
2 comentários:
Vou pensar na melhor maneira de difundir isto, porque isto tem de ser lido e entendido.
Meu caro
Esta é uma questão complexa não apenas pelas variáveis internas de economia mas também dos condicionamentos externos (nos últimos dias as economias da Alemanha e dos EUA revelaram debilidades que se vão repercutir em todo o mundo e na Europa, tornando cada vez mais destituídas de sustentação previsões de melhorias para 2014). E esta complexidade repercute-se também no delicado caminho de avançar propostas muito definitivas sobre como sair do euro.
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