terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Memórias, diferenças e um convite



(adaptado de um outro texto que li há meses)

De acordo
com alguns reguladores, fazedores de opinião para talk-shows e pseudo-cientistas todos os
que nascemos nos anos 40, 50, 60 e 70, não devíamos ter sobrevivido até hoje, porque trincávamos os soldados de chumbo, pintados com cores bonitas com tinta à base de chumbo e outros metais pouco recomendáveis.

Podíamos abrir os armários e brincar com as panelas, subindo aos bancos e cadeiras, até porque às vezes não havia dinheiro para outros brinquedos. E as tampas das panelas umas contra as outras e as colheres a bater no fundo dos tachos faziam-nos po
arecer membros de uma banda filármónica
E sentávamo-nos a vêr as nossas mães a fritar filhós e coscurões, não evitando um pingo de óleo fervente num braço ou numa perna sem avançarmos para os centros de saúde.

Para os que tinham a felicidade de terem uma bicicleta, não usavam capacetes. Por vezes “partíamos as cabeças” (um golpe) quando caíamos delas ou quando andávamos à pedrada uns com os outros.

Quando éramos pequenos adorávamos ir no banco lateral dos eléctricos amarelos abertos, pendurados, ou nos autocarros verdes na plataforma de trás aberta.
Os que tinham pais com carros viajavam neles sem cintos e airbags, e o viajar no banco da frente era um presente que permitia imitar a condução dos pais.

Bebíamos água da mangueira do jardim e da torneira e ela sabia-nos bem.

Comíamos batatas fritas, pão com manteiga e bebíamos gasosa com
açucar (os pirolitos e as schwepps), mas nunca engordámos porque passávamos muito tempo a brincar fora de casa.

Partilhávamos garrafas e copos com os amigos e nunca morremos por isso.

Passávamos horas a fazer carrinhos de rolamentos e depois andávamos a grande velocidade pelas ruas abaixo, para só depois nos lembrarmos que era preciso montar umas traves e havia algumas coxas e rabos esfolados – coisa de pouca monta... ou muitos espinhos quando nos enfiávamos em moitas com silvas.

Nas férias, saíamos de casa de manhã e brincávamos o dia todo, desde que estivéssemos em casa antes de escurecer.

Estávamos incontactáveis e ninguém se importava com isso.

No tínhamos Play Station, X Box...Nada de 40 canais de televisão, filmes de vídeo, home cinema, telemóveis, computadores, DVDs, ou chat na internet.
Tínhamos amigos e se os quiséssemos encontrar íamos à rua chamar por eles.
Jogávamos à bola, às escondidas e à macaca, à carica, às vezes cheia de plasticina, nos perfis das calçadas, ao bilas com os abafadores e os mata-mundos nos buracos que fazíamos na terra com as mãos .

Caíamos das árvores, aleijávamo-nos, e até partíamos ossos mas sempre sem meter processos em tribunal contra terceiros, só com os raspanetes dos pais.

Andávamos muitas vezes à porrada entre nós mas sem sermos processados pelos pais dos outros.

Batíamos às portas de vizinhos e fugíamos e tínhamos medo de sermos apanhados. Quando os vizinhos nos rogavam pragas até espetávamos um palito nas campaínhas para elas ficarem a tocar mas eles não iam à polícia queixar-se...

Íamos a pé para casa dos amigos. Para a escola e não esperávamos que a mamã ou o papá nos levassem.

Se infringíssemos a lei era impensável os nossos pais nos safarem a não ser que fossem da União Nacional.

Esta geração produziu bons investigadores e desenrascados.
Estes foram também anos de explosão de inovações e ideias novas.

Tínhamos liberdade que sabíamos condicionada pelos fascistas, líamos nas entrelinhas ou ouvíamos as rádios “clandestinas”. Tivemos fracassos, sucessos e responsabilidade e aprendemos
a lidar com tudo.

O mundo era a cores apesar dos registos que ficaram serem a preto e branco. Mas ainda apanhámos o Michael Jackson bem preto. E as raparigas giras, sem preocupações de implantes ou caracterizações faciais a não ser alguns “chumaços” e rimel mas só para os dias de festa. E a rapaziada nesses dias com brilhantina e cara de parvos, que só em poucos casos se assemelhavam ao Elvis.

As discotecas abriram lentamente mas namorávamos as raparigas (ou as “sopeiras”, hoje empregadas domésticas) do quintal para as janelas, sob o olhar, por vezes cúmplice dos guarda-nocturnos, que também faziam as suas surtidas amorosas mais tarde pela calada da noite.

Mas quando íamos à terra e brincávamos com miúdos como nós, com muita alegria e encontrões, notávamos que estavam descalços e que a certas horas tinham que ir trabalhar com os pais no tratamento do gado ou em ferrarias. Quando vinham à casa dos nossos parentes, com a natural solidariedade sem preocupações mediáticas, dávamos-lhes um par de sapatos, uma camisola ou uns brinquedos a mais. Com uma grande troca de risos e sem vergonhas. 

Hoje o pessoal anda mais surumbático, sem rumo e sem alegria, vivendo o dia-a-dia sem lhe ser permitido pensar o futuro.

Mas vamos todos dar a volta a isto. Custa mas tem que ser. Já dizia o Zé da loja das ferragens da minha rua.

2 comentários:

Maria Ventura disse...

Belo texto António....

fiz uma belíssima viagem, num caixote de quatro rodas, a descer a ladeira que ía ter a uma outra ladeira, a da igreja,onde o adro era um ponto de encontro .

Foi um "conta-me como foi".

Abraço

FG disse...

Que bom que foi ler este texto! Reencontrei-me com a míúda longinqua, levada da breca... já nem me lembrava que tinha sido tão feliz! Obrigada.