terça-feira, 9 de setembro de 2008

Neo-liberalismo e cultura, por Frei Betto



O neo-liberalismo não pretende apenas destruir as instâncias comunitárias criadas pela modernidade como a família, os sindicatos, os movimentos sociais e o Estado democrático. O seu projecto de atomização da sociedade reduz a pessoa à condição de indivíduo desligada da conjuntura sociopolítica e económica em que está inserido, e encara-o como um simples consumidor. Por isso se estende à esfera cultural.

Um dos avanços da modernidade foi, com o advento da democracia, reconhecer a pessoa como sujeito político. Este passou a ter direitos, para além de deveres. Dotado de consciência crítica, livrou-se da servidão cega e dócil em relação às ordens de seu senhor, ciente de que autoridade não é sinónimo de verdade nem poder sinónimo de razão.

Procura tirar à pessoa a sua condição de sujeito. O protótipo do cidadão liberal é o que se abstém de qualquer pensamento crítico e, acima de tudo, de participar nas instâncias da comunidade. Para essa cultura de abstenção voluntária contribui de modo especial a televisão.


A televisão, em si mesma, é uma poderosa ferramenta de formação e informação. Mas pode ser facilmente convertida em mecanismo de desinformação e distorção, especialmente quando se liga à máquina publicitária que rege o mercado. A mesma televisão que passa a ser um produto para ser consumido fica concentrada na procura do aumento da audiência.

Isto é feito através de todos os tipos de estratégias que garantam que os telespectadores sejam atraídos pelas imagens. A questão é que a janela electrónica é aberta para a unidade familiar. É neste ponto que descarrega a profusão de imagens que atinge indiscriminadamente a crianças e adultos, sem o mínimo respeito quanto ao universo de valores familiares.

Se a televisão transmitisse cultura – tudo o que eleva a nossa consciência e o nosso espírito – seria o mais poderoso veículo de educação. É verdade que o faz também, mas a regra geral não é a densidade cultural mas tão só o simples entretenimento: distrai, diverte e, acima de tudo, abre a caixa de Pandora dos nossos desejos inconfessáveis. A imagem "diz" o que não nos atrevemos a pronunciar.

Ao ultrapassar o diálogo entre pais e filhos e impor-se como um interlocutor hegemónico no agregado familiar, a televisão altera referências simbólicas do psiquismo da criança. Fala como uma geração que transmite a outra de crenças, valores, nomes próprios, genealogias, rituais, as relações sociais, etc. Apresenta-se com a mesma capacidade humana de falar, através da qual se tece a nossa subjectividade e a nossa identidade. Nesta interacção, proporcionada pelo diálogo oral, cara a cara, faz-nos reconhecer o eu diante do Outro, assim como as muitas ligações que ligam um aos outros, tais como emoções, imagens causados por movimentos e expressões faciais, carregadas de sentimentos, etc.

A fala ou o diálogo demarcam as referências fundamentais para a nosso equilíbrio psíquico, como a identificação do tempo (agora) e espaço (aqui), e os limites do meu ser em relação aos outros. Se a fala se resume a uma catarata de imagens que se encarregam de inflamar os sentidos, as referências simbólicas da criança passam a correr perigo. A criança sente a dificuldade de construir o seu universo simbólico, não adquirindo sentidos de temporalidade e historicidade. Tudo se reduz ao "aqui e agora," à simultaneidade. A mesma tecnologia que reduz as distâncias em tempo real – Internet, telemóveis, etc. – favorece um sentimento de ubiquidade: "Eu não estou em qualquer lugar porque estou em todos.”·
Muitos professores se queixam de que os alunos já não estão tão atentos na sala de aula. Claro, o sonho deles seria o de serem capazes de mudar o professor de canal. Muitas crianças e jovens têm dificuldades em se expressarem porque não sabem ouvir. Têm um raciocínio confuso, em que a lógica muitas vezes desliza no aluvião da mistura de sentimentos. Acreditam que, antes de mais, são os inventores da roda e, por conseguinte, pouco se interessam pelo património cultural de gerações anteriores (o financeiro, sim, sem dúvida).·
Assim, a cultura perde sofisticação e profundidade, limita-se aos simulacros de talk shows, onde todos se exprimem de acordo com a sua reacção imediata, sem reconhecer a competência do outro. No caso da escola, este Outro é o professor, visto não apenas como despojado de autoridade, mas, acima de tudo, como alguém que abusa do seu poder e que não admite que os alunos o tratem por igual… Então, e uma vez que o professor não "ouve", há apenas um meio de o fazer ouvir: a violência. Porque eles foram instruídos pela televisão, que não pratica o exercício da argumentação paciente, da construção esclarecedora, do aperfeiçoamento do sentido crítico. É o incessante dar e receber, e quase sempre na base da coacção.


Por isso se enquadra no âmbito de uma educação qualificada por Jean Claude Michéa de "dissolução da lógica". Deixa de se distinguir entre o principal e o secundário, de perceber o texto no seu contexto, de incluir o particular no pano de fundo do geral, para aceitar passivamente as pressões do consumo que procuram transformar os valores éticos em meros valores monetários, ou seja tudo é marketing, e o seu preço é que imprime, a quem o tem, determinado valor social, mesmo sem carácter.

Dispensar o acto de pensar, reflectir, criticar e, especialmente, de participar no projecto de transformar a realidade. Tudo se torna uma questão de conveniência, gosto pessoal, simpatia. Também são consideradas comerciáveis a biodiversidade, a protecção ambiental, responsabilidade social das empresas, o genoma, os órgãos extraídos a crianças, etc.

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