Quando li algumas das
afirmações contidas no relatório do FMI relativas às questões da
Saúde lembrei-me imediatamente de um artigo escrito há cerca de 10
anos pelo Prémio Nobel Joseph Stiglitz com o título “ O que
aprendi sobre a crise económica mundial desde o FMI” (
www.rebelion.org/hemeroteca/economia/030901stiglitz.htm).
Nesse artigo, Stiglitz
afirmou o seguinte: “ Quando o FMI decide ajudar um país, despacha
uma missão de economistas. Estes frequentemente carecem de
experiência suficiente sobre esse país. O mais provável é que
tenham maior conhecimento em primeira mão sobre os seus hotéis de
cinco estrelas que dos povos que se espalham pela sua zona rural…
soube-se que equipas de trabalho para um país redigiram rascunhos de
relatórios antes de o visitar. E ouvi histórias de um infeliz
incidente ocorrido quando os membros de uma equipa copiaram extensas
partes de um relatório correspondente a um país e as transferiram
na sua totalidade para outro. Teriam conseguido o seu objectivo se a
função “buscar e substituir”do seu processador de texto não
tivesse falhado, deixando o nome do primeiro país em algumas
partes”.
E a lembrança destes
extractos pontuais do citado artigo surgiram quando li a afirmação
contida no relatório de que “ entre as economias desenvolvidas,
Portugal tem experimentado um dos maiores aumentos na despesa da
saúde pública durante as 3 últimas décadas”.
Ora, há cerca de um
ano a OCDE publicou um relatório sobre os sistemas de saúde dos 34
países que a integram e aí foram feitas, entre outras, as seguintes
referências ao nosso país:
- Portugal é o 5º país com melhor evolução na esperança de vida.
- É o 1º no declínio da mortalidade infantil.
- No indicador global para resultados em saúde, Portugal está acima da média da OCDE, sendo o 2º com melhor evolução entre 1970 e 2009.
- Portugal é o 2º país com menor crescimento da despesa total em saúde entre 2000 e 2009.
- Na despesa pública em saúde é o 3º país em que ela menos cresceu.
- Os custos administrativos representam apenas 1,7% da despesa, claramente abaixo da média de 3% da OCDE.
Relendo estes dados da
OCDE, ainda voltei a verificar bem o texto do relatório do FMI que
foi divulgado para ver se lá havia por lapso o nome de outro país,
porque estávamos perante uma afirmação tão falsa quanto a esses
supostos grandes aumentos da despesa, logo isso não podia dizer
respeito a Portugal.
Relativamente às
várias questões abordadas nesse relatório do FMI é importante
analisar as seguintes:
- É afirmado que existe um elevado pagamento de horas extraordinárias a médicos e que para limitar essas horas, os pacotes salariais devem ser conduzidos a uma maior paridade com outros países da UE.Mas o relatório nada diz sobre os serviços onde essas horas são efectuadas.As horas extraordinárias na saúde são efectuadas, na quase totalidade, a nível dos serviços de urgência, que são os únicos serviços públicos que funcionam continuamente todos os dias do ano.O recurso às horas extraordinárias foi aumentando na proporção directa da diminuição do número de médicos e do envelhecimento da sua estrutura etária em função de largos anos de numerus clausus altamente restritivos.
- Faz várias referências à suposta existência de “salários relativamente elevados neste sector” em virtude de compensações com o trabalho extraordinário.
Desde
logo, há que ter presente que só os médicos hospitalares, e não
são todos, é que estão inseridos nas escalas dos serviços de
urgência e que não são eles que se escalam a eles próprios, mas
que as suas distribuições numéricas obedecem às necessidades de
resposta desses serviços.
Afirmar
que os salários dos médicos são elevados constitui nova falsidade,
facilmente verificável pela mera consulta às múltiplas posições
remuneratórias contidas na Tabela Remuneratória Única da Função
Pública.
- É curioso ler a seguir a essa referência aos salários que para enfrentar essa situação o Ministério da Saúde propôs o aumento do horário semanal de trabalho para as 40 horas semanais, igual ao privado, e a alteração dos métodos de trabalho nos hospitais.
Não
é admissível que uma equipa de peritos do FMI possa acumular tantas
afirmações falsas que não correspondem aos factos concretos e de
fácil consulta prévia.
O
actual Ministério da Saúde nunca propôs o aumento do horário
semanal dos médicos, dado que esta matéria da criação de um novo
regime de trabalho de 40 horas semanais era a única matéria
pendente das negociações das carreiras médicas e da respectiva
contratação colectiva concretizada com o governo anterior.
Por
outro lado, não se conhece qualquer padrão de horário de trabalho
de 40 horas nas instituições privadas de saúde.
E
outro aspecto sem qualquer relação com a realidade é a alteração
dos métodos de trabalho nos hospitais.
Que
métodos novos foram adoptados?
Nenhuns.
- Apesar das taxas moderadoras serem já hoje muito avultadas e configurarem um copagamento, o relatório considera que devem ser perspectivados maiores aumentos, o que comprometeria em larga escala o acesso aos cuidados de saúde de um numero ainda maior de cidadãos, independentemente das isenções existentes.
Simultaneamente,
são enunciadas generalidades que há muito são discutidas como, por
exemplo, a questão da inversão numérica entre médicos e
enfermeiros, melhores economias de escala e a necessidade de
encontrar as soluções adequadas na articulação dos níveis
prestadores de cuidados que obviem ao recurso arbitrário e
desnecessário a cuidados hospitalares.
- No contexto global da abordagem das questões relativas à Saúde existem 4 aspectos que exigem uma particular atenção.É proclamada a necessidade de “repensar todo o sistema” e afirmado que ficou claro que o sistema de saúde se tornou insustentável e tem uma urgente necessidade de reforma.O terceiro aspecto é a defesa de uma definição mais clara do âmbito e das prioridades de pacotes de benefícios de saúde com financiamento público com restrições claras que tenham em conta as disponibilidades de natureza fiscal, e o quarto aspecto é a defesa da ampliação do papel do sector privado.
Colocados
os cinco pontos anteriores, é indispensável analisar estes últimos
aspectos, dada a sua extrema gravidade político-social.
Apesar de
todas as limitações inerentes a qualquer estrutura prestadora, é
indiscutível que o nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS) colocou o
nosso país nos primeiros lugares mundiais dos principais indicadores
de saúde e com custos mais baixos do que a grande maioria dos países
desenvolvidos.
Um dos
eixos ideológicos fundamentais da ofensiva totalitária e neoliberal
contra os serviços públicos é argumentar que a gestão pública
não é competente e que não permite uma adequada rentabilização
da capacidade instalada em benefício dos cidadãos.
No caso
do nosso SNS, mesmo havendo o reconhecimento internacional de
organismos insuspeitos como são os casos da OMS e da OCDE quanto aos
resultados obtidos, essa ofensiva continua empenhada em destruir esta
realização social e humanista, chegando ao extremo da desonestidade
política de afirmar que o sistema de saúde se tornou insustentável,
embora não apresente qualquer fundamentação para isso e os
próprios indicadores conhecidos demonstrem o contrário.
Trata-se
de pura propaganda ideológica, cujo objectivo fundamental é tornar
o direito à saúde num negócio altamente lucrativo para grupos
económicos e seguradoras, à semelhança de vários países.
No fundo,
trata-se de reduzir a saúde a um mero bem de consumo dependente da
capacidade económica de cada cidadão: quem tem dinheiro compra os
cuidados de saúde, quem não tem fica abandonado à evolução
natural da doença.
No nosso
país, o sector privado na saúde sempre desempenhou um papel
alargado apesar da consagração constitucional de um SNS.
Existem
diversas áreas em que o sector privado é o principal prestador,
como são os casos, por exemplo, da hemodiálise, análises clínicas,
imagiologia e de outras técnicas de diagnóstico.
Por outro
lado, os dinheiros públicos tem continuado a financiar hospitais
privados e ultimamente as PPP, o que se traduz numa forma dissimulada
de alimentar e alargar o papel do sector privado.
Nesse
sentido, vir propor uma maior ampliação do sector privado é
assumir que o objectivo central deste relatório é sustentar a
política governamental de ódio ideológico a todas as realizações
sociais e humanistas do regime democrático.
Este
pacote mínimo excluía quaisquer cuidados que envolvessem maior
tecnologia.
Relativamente à defesa da definição de pacotes de benefícios de saúde com financiamento público assentes em restrições claras, estamos perante a afirmação talvez mais grave de toda a abordagem do relatório, com o aspecto muito perigoso de não ser entendida pela generalidade dos cidadãos, tendo em conta a terminologia disfarçada.
Esta “canasta” era constituída por um pacote mínimo de serviços definidos como essenciais ou básicos para a cobertura em cuidados primários de grupos populacionais mais vulneráveis, nomeadamente populações pobres e residentes em áreas rurais e de difícil acesso.
A Conferência de Alma Ata realizada pela OMS em 1978 tinha sido já palco de uma clara tensão entre duas formas muito diferentes de conceber uma política de cuidados de saúde primários.
De um lado, estava uma concepção abrangente virada para um sistema integrado e do outro lado estava a defesa de um tipo de cuidados dirigidos para populações pobres desprovidas de acesso a recursos.
Esta formulação ficou tristemente conhecida em muitos países, particularmente na América Latina, nas décadas de 1980 e de 1990, como a “canasta básica de cuidados de saúde”. de cuidados de saúde e como parte integrante do
desenvolvimento económico-social.
Como
sabemos a concepção abrangente saiu claramente vencedora nas
conclusões dessa conferência, mas no ano seguinte a Fundação
Rockefeller promoveu uma reunião em Itália com a colaboração de
diversas agências internacionais, concretamente o Banco Mundial, a
Fundação Ford e a Agência Internacional para o Desenvolvimento, e
aí foi aprovada uma definição de “cuidados primários
selectivos”, que se baseava num pacote de intervenções de baixo
custo para combater as principais patologias em países pobres.
No caso
concreto da América Latina, o desenvolvimento desta política de
saúde baseada na referida “canasta básica” produziu profundas
desigualdades no acesso aos cuidados de saúde, determinou a
fragmentação e a segmentação dos serviços de saúde e conduziu à
degradação generalizada dos indicadores de saúde.
Importa
recordar que nessa altura este tipo de política de saúde foi
aplicado em países que viviam sob ferozes ditaduras fascistas, de
que o primeiro exemplo foi o governo de Pinochet no Chile.
Na última
década a grande maioria dos países latino americanos encetaram
profundas mudanças nas suas políticas de saúde numa perspectiva de
maior intervenção dos serviços públicos e na criação das bases
de sistemas de cobertura universal.
Pelos
vistos, este relatório vem apresentar uma “cassete” com 30 anos
de bolor, mas com alterações na sua terminologia técnica para
esconder a sua essência e não suscitar a recordação da acumulação
de desgraças humanas provocadas nesses países.
Em
Portugal, estamos hoje confrontados com a maior tentativa de
destruição do Estado Social e de mercantilização da vida humana.
Estando
claramente em perigo a coesão social e o Estado Social, começa a
ser o próprio regime democrático e constitucional a ser colocado em
causa.
A
intervenção cívica é hoje mais do que nunca necessária e
urgente!!
7 comentários:
Então mas Mário Jorge Neves (o da FNAM/SIM), pois que não vejo diferença, não foi acérrimo defensor do Partido dito Socialista, o mesmo que compõeuma das troicas?
É da vida meu caro.
Conheço o Mário Jorge, não conheço esses episódios e considerações , estou de acordo com o que ele escreveu, mas até podia não estar. Talvez, nesse caso, o publicasse, simultâneamente com um comentário meu. Talvez.
O meu leitor anónimo optou pelo anonimato mas pode assim manter-se para nos esclarecer sobre as afirmações que fez. Este espaço é seu. Sinta-se à vontade...
O Mário Jorge está neste saco de gatos: http://pensamentodefuturo.info/Home_Page.html
Abraço do anónimo.
Depois de considerações complementares do leitor anónimo, sugiro-lhe, para conhecer as minhas opiniões sobre esta matéria, que leia o post que deixei hoje no blogue.
Obrigado.
Mas lá que aquilo (comissão promotora do repasto do Brito) é um saco de gatos, me parece ser indesmentível.
Ou não?
Ainda sobre o "saco de gatos". É expressão que se não adequa. Não estão de unhas de fora uns para os outros. Têm relações de proximidade. O PCP para muitos deles faz-lhes pele de galinha. Estão disponíveis para bicadas. Outros não. Estão preocupados com a necessidade, que todos sentimos, de haver uma convergência à esquerda para configurar uma solução política que vença a direita no confronto político e em eleições. Mas, por vezes, estes últimos valorizam mais a convergência, em abstracto, sem atender com que objectivos. Por isso, se não se preocupam com a definição de objectivos correspondentes, não tanto aos seus sistemas de idéias, mas das necessidades que continuamente a realidade objectiva nos impõe, como a melhoria das condições de vida, a defesa do estado social em todas as suas componentes, a rfecuperação de direitos perdidos ou ameaçados, o aumento da produção,a reconsideração da presença no euro e na própria UE feita em termos vantajosos para Portugal, o emprego, as saídas profissionais para os jovens. Se não se coloca isto no centro das preocupações, está a fazere-se um jeito a quem não quer nada disto.
Pois!
As unhas de fora são exactamente para o PCP.
"Estão preocupados com a necessidade, que todos sentimos, de haver uma convergência à esquerda"...
Não posso estar mais em desacordo com esta afirmação. Será que estão mesmo preocupados com essa dita necessidade? Ou será que a necessidade é a de juntar as ditas "convergências" para combater o PCP? Esse, parece o objectivo central (infelizmente). Mas serão todos? Seguramente não. Mas quem segura os cordelinhos das marionetas, esses...esses são os dos objectivos aparentemente ocultos. Ou estarei enganado?
Abraço.
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