sábado, 21 de junho de 2014

"Proclamação ou chamem-lhe o que quiserem", de José Goulão



Chamaram-lhe “proclamação” por ser a palavra mais neutra possível na circunstância, mas não deviam ter vergonha em chamar-lhe coroação, entronização, o que quer que seja.
Os mentores do regime espanhol, com as cabeças guiadas pelos fantasmas, temores e interesses que levaram Franco a fuzilar a república em 1936, tentaram agora despir a monarquia dos principais ademanes e parafernália, mas ela não deixou de ser monarquia, e não é por ter havido beija-mão que ela ali ficou reafirmada, por necessidade mínima de sobrevivência, na “proclamação” de um novo rei.
Não poderia haver melhor coligação histórica para este mediavelismo revivalista do que a formada pela casa real dos Bourbon, atulhada em corrupção, faustos repugnantes, gastos insultuosos, e por um governo de Rajoy, assente no culto neofranquista de uma nação, uma religião, uma família, uma economia de prebendas para os poucos escolhidos e de austeridade, miséria e desemprego rampantes para a multidão dos restantes. O desinteresse do povo nas ruas e pela vacuidade do discurso filipino tentará agora ser compensado, à escala ibérica e global, pela indústria propagandística cor-de-rosa como aplicação refinada das recomendações goebbelianas para substituir a infelicidade própria pela ficção da felicidade dos escolhidos de Deus.
Não é porque o cardeal não depositou a coroa na cabeça do rei que a Monarquia passou a ser outra coisa; o cadeirão trono poderá ser pós-moderno mas é trono; a Constituição está lá mas o rei é, por definição, a imagem de Deus para os seus súbditos enquanto o chefe do governo e os seus ministros juram perante ele e os símbolos de uma religião única, acto que automaticamente transforma milhões de pessoas em cidadãos incumpridores de requisitos para serem filhos do mesmo Estado.
A Monarquia é Deus, Pátria, Família – Deus único, Pátria una, família “normal” – não é assim que se define? Eis a Espanha de hoje, enquanto a realidade pujante e criativa dos seus povos a nega e renega pela ordem natural das coisas e pelo progresso dos tempos e ideias.
É por temor a esta ordem natural das coisas, ao progresso dos tempos e ideias que as monarquias, tal como as repúblicas de novo tipo, monárquicas e autocráticas, se reformulam e mimetizam para garantir que o essencial do poder do dinheiro e das suas versões divinas fiquem de pedra e cal, imutáveis, mesmo que em redor tudo pareça mudar e avançar.
O rei como incarnação de Deus para unidade da Pátria é a definição da Monarquia imóvel e imutável, a expressão limite do fundamentalismo religioso como expressão do Estado, seja na Arábia Saudita ou em Espanha, ainda que os meios para atingir os fins sejam diferentes nas aparências.
Em Espanha, além de ser instrumento da austeridade, da miséria e desigualdade crescentes, a Monarquia é a arma sob a ameaça da qual se obrigam a manter unas uma Pátria e uma Nação que não existem. Como ficará demonstrado."




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