terça-feira, 24 de março de 2015

excerto do poema «Tríptico», publicado em A Colher na Boca, 1961



Não sei como dizer-te que minha voz te procura

e a atenção começa a florir, quando sucede a noite

esplêndida e vasta.

Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos

se enchem de um brilho precioso

e estremeces como um pensamento chegado. Quando,

iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado

pelo pressentir de um tempo distante,

e na terra crescida os homens entoam a vindima

— eu não sei como dizer-te que cem ideias,

dentro de mim, te procuram.

 

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros

ao lado do espaço

e o coração é uma semente inventada

em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,

tu arrebatas os caminhos da minha solidão

como se toda a casa ardesse pousada na noite.

— E então não sei o que dizer

junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.

Quando as crianças acordam nas luas espantadas

que às vezes se despenham no meio do tempo

— não sei como dizer-te que a pureza,

dentro de mim, te procura.

 

Durante a primavera inteira aprendo

os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstrato

correr do espaço —

e penso que vou dizer algo cheio de razão,

mas quando a sombra cai da curva sôfrega

dos meus lábios, sinto que me faltam

um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer

coisa extraordinária.

Porque não sei como dizer-te sem milagres

que dentro de mim é o sol, o fruto,

a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,

o amor,

 
que te procuram

2 comentários:

Anónimo disse...

Sempre e para sempre.

Maria

Anónimo disse...

E a Maria tem razão.

:)