1. Onde estava no dia 26 de Outubro de 1969, dia das “eleições”?
Na sede da CDE em Lisboa, depois de nos dias anteriores ter andado a distribuir por muitos lados (caixas de correio, empresas e organismos do Estado), as listas e boletins de voto da candidatura da CDE, para que quem fosse votar pudesse contar com outros suportes além dos da Acção Nacional Popular (ex-União Nacional).
Foi um dia longo, com notícias de irregularidades diversas. Eu estava integrado numa comissão de jovens activistas da CDE que faziam de tudo um pouco. A noite terminou com os resultados eleitorais esperados e com vivas a vários deles em que a CDE, apesar da grande chapelada, tivera resultados significativos, particularmente nas cinturas industriais de Lisboa e Setúbal. Porque, apesar de se saber que estávamos numa fraude, tinham-se gerado entusiasmos. Mas, peguemos nas questões por outra ponta.
2. 1969: um ano cheio, a começar no IST mas com outras facetas
Estava a tirar o 3º ano do curso de Engenharia Industrial no IST, de que era delegado de curso eleito pelos meus colegas. Estava envolvido no trabalho da direcção da Associação de Estudantes do IST, presidida por Mariano Gago, e de que fui vice-presidente. Os anos de 68 e 69 foram de grandes lutas também no IST.
Namorava e dava aulas para custear as minhas despesas. Andava a frequentar o campismo com outros colegas meus, parte dos quais também estavam na CDE, a convite do saudoso camarada Joaquim Campino, então presidente da FPCCC.
Depois deste período, o Vieira Lopes (hoje na Confederação do Comércio) convidou-me a integrar uma lista para a AEIST, como forma de me defender um pouco mais da PIDE/DGS. É um registo que guardo do trabalho com outros, esquerdistas, que travavam um combate comum mas também contra a nossa influência, que se viria a alargar no IST dois anos depois até ao 25 de Abril.
Depois de um período de quatro anos, a ausência de contactos com o PCP desde 1965, fizera-me aproximar de alguns esquerdistas de diversas formações, por neles reconhecer, à data, lutadores convictos com quem me identificava na acção e, por vezes, também nas ideias. Entretanto em 69 saiu da cadeia o saudoso José Bernardino, que me (re) recrutou e me pôs em contacto com a estrutura clandestina do Partido. O Zé saíra do IST para a clandestinidade. Saiu da cadeia para prosseguir o curso de engenharia. Enquanto esteve no IST o Bernardino teve apoio nos estudos por parte do Danilo de Matos, irmão do Arnaldo, com quem então convivi, antes de se tornar no “grande educador da classe operária”. O Bernardino, é claro, voltou à clandestinidade. A passagem temporária pela vida normal dos camaradas que tinham estado presos quando estavam clandestinos, era, em geral, seguida do regresso à clandestinidade. O meu primeiro “controleiro” foi o escritor Mário de Carvalho, então estudante da Faculdade de Direito de Lisboa.
3. CDE, CEUD e a unidade democrática
Foi neste ambiente que também colaborei na CDE, como activista de base, depois da fase do recenseamento em que a oposição reclamou de inúmeras irregularidades. O meu irmão Luís tinha muito trabalho lá, ligado ao sector editorial, quer ao sector criativo com Ary dos Santos, Adriano Correia de Oliveira e outros ligados à Espiral, mas não só, e ao sector da reprodução com o Ladislau Gouveia.
Aí, contrariando à leitura oportunista que Mário Soares e a Acção Socialista (AS) faziam da “primavera” marcelista, e presos a concepções ultrapassadas de funcionamento organizativo da oposição, a situação desta mudava.
Por força da luta dos trabalhadores e da luta estudantil bem como de um renovado activismo de sectores católicos e correntes socialistas independentes à esquerda da AS, se reforçou uma unidade combativa mais consequente, apesar de algum debate interno com um sector que viria a originar o MES (Jorge Sampaio, Vítor Wengorovius e outros companheiros, que, por sua vez, tinham averbado uma experiência política importante no movimento estudantil e como advogados de presos políticos e de estudantes perseguidos, como também aconteceu comigo).
A opção de ida às urnas, com a chapelada generalizada e a desproporção de meios técnicos e logísticos em relação à União Nacional, permitiu esclarecer aqueles que tinham dúvidas sobre Marcelo, alguns dos quais quase estavam a querer transformar as oposição num tampão sobre o movimento de resistência antifascista em benefício do ditador que, supostamente, precisaria de uma “ajudinha” para vencer os “ultras”…
Não foi essa a primeira vez em que alguns defenderam que fosse legalizada uma oposição sem os comunistas. A seguir ao 25 de Abril de 1974, alguns também se dispunham a isso, ombreando com Spínola…
A opção da Acção Socialista por candidaturas suas, com a sigla CEUD, acabou por vingar em alguns distritos sem qualquer tipo de êxito relativo. Em Lisboa, por exemplo, a CEUD teve 4% e a CDE 15%.
Não me detenho, agora mais sobre esta questão. O José Manuel Tengarrinha, em entrevista que deu à Seara Nova em 2005 desenvolve os aspectos políticos mais relevantes.
Também é obrigatório consultar o dirigente do PCP que à data, tinha contactos com ele e que continua entre nós - Pedro Ramos de Almeida.
4. A repressão da “liberalização” no decurso deste período político
Não se pode avaliar a atitude de Marcelo como “liberalizante” por ter feito regressar Mário Soares do seu exílio de 4 estrelas em S. Tomé. Para conferir, por intermédio de contactos que manteve com quadros superiores do regime, maior consistência à farsa, e aceitando uma legalização da Acção Socialista em detrimento dos comunistas e outras correntes de opinião que tinham a maior influência na oposição.
Quem ainda hoje teoriza que Marcelo queria uma liberalização e estava convicto dessa necessidade em articulação com alguns grandes capitalistas que se queriam “libertar” do corporativismo, dos condicionamentos económicos, mantem uma ficção de baixa qualidade não sustentada - não nos desabafos ou iniciativas sem resultados mas da apreciação dos acontecimentos imediatamente posteriores.
Esta atitude de cooperação com a “primavera marcelista” de Soares e da AS não resultou da evolução própria do seu pensamento político. Muita gente na altura alimentava grandes expectativas de alguma “descompressão” mas não a aproveitava para percorrer ambições pessoais. Outros, que acabariam por vir para a oposição, emprestaram alguma cientificidade à abertura à investigação social de faculdades e outros organismos, ou participaram mesmo na Câmara Corporativa e organismos anexos.
Muitas prisões de militantes comunistas e de outras correntes políticas de idade mais recente, trabalhadores estudantes de um ano que foi de todas as lutas estudantis de norte a sul, não só com epicentro em Coimbra e com alguma influência do Maio de 68, dois assassinatos, de Ribeiro Santos, do MRPP e de Daniel, estudante português de Teologia da Universidade de Lovaina, a introdução de uma nova polícia de choque tipo anti motim e dos gorilas nas faculdades, foram questões que tiveram grande impacto nesse ano e que ajudaram a isolar o regime fascista que estava a ter dificuldades crescentes com a guerra colonial.
Permitam que refira um episódio comigo passado.
No 5 de Outubro deste ano, para além da romagem ao cemitério do Alto de S. João, onde também houvera pancada séria, realizou-se uma outra na estátua de António José de Almeida, nas traseiras do IST. Muita gente. A polícia de choque do Maltez Soares (oficial do exército feroz, com ligações a contrabandistas e a negócios de proxenetismo na Madeira e menino querido de Marcelo Caetano) formava fileiras com metralhadoras. Outros agentes da PSP mais convencionais integravam o grupo repressivo. O Maltez trazia o seu capacete com viseira ,que foi utilizando em múltiplas ocasiões até ao 25 de Abril. Cantou-se o hino nacional. A polícia carregou e espancou muitos dos presentes. Um dos mais atingidos foi Vasco da Gama Fernandes, um socialista de fibra que nestas alturas não ficava atrás dos outros. O meu irmão Luís agarrou-o. Ao meu pai partiram o braço com a coronha de uma metralhadora. Um grupo de jovens, em que me incluía, decidiu responder e atirou-se a um PSP pouco blindado. O homem apanhou, ficou sem a arma, o cassetete e o boné.
O Maltez espumava no estribo do nívea (ou carocha) da PSP, como gostava de fazer. Concentrou-se em mim (já a Clara Pinto Correia um dia escreveu que nestas confusões ela e outros estudantes me procuravam pela estatura…) “Agarrem aquele!”. Fui preso e logo ali espancado e enfiado dentro do nívea onde continuei a apanhar. O meu pai e o meu irmão enfiaram-se num carro e vieram atrás de mim mas, em frente ao liceu Filipa de Lencastre, um grupo de polícias de choque cortou-lhes o caminho e prendeu-os. Fui levado para a esquadra do Arco Cego onde entrei aos empurrões. Aí fui espancado durante algum tempo por uma meia dúzia de polícias de choque. Tive um ligeiro desmaio, recuperei e continuaram. Estive uns minutos sem ver. O sangue escorria. Fiquei cheio de nódoas negras e a cuspir sangue no resto do dia. Entretanto chegavam outros presos, os meus familiares, o Frederico Carvalho, a Eugénia Varela Gomes.
A concentração das atenções do Maltez em mim ficou a dever-se à necessidade de escolherem quem fosse responsabilizado pela cena do polícia desarmado. Mas de arma não falavam talvez para não pôr em cheque o agente que se vira privado das suas “razões”.
Não ficaram por aí. Eu e os outros fomos levados para os calaboiços do governo civil e daí só eu fui levado a interrogatório na sala do comando. Conduzido pelo então subchefe Manteigas e por outra besta. Ligações ao Partido, quem me recrutou, onde pusera os haveres do agente, etc., foram os motes. Como não respondia, espancavam-me a murro e a pontapé intervaladamente com novas tentativas para me porem a falar. Como não levaram nada, lá fizeram um auto de declarações, depois de lhes ter dito que só prestaria algumas declarações na presença do meu advogado, Dr. Vasconcelos de Abreu (que nesse ano era candidato e depois do 25 de Abril foi vereador da CML pelo CDS…). Como não meteram esta referência no auto, não assinei. Aí levei novamente, a sério. Voltei aos calabouços de rastos com o meu pai aos gritos.
Os candidatos da CDE tinham-se posto em campo para exigir a nossa libertação, que conseguiram. Ao sairmos, lá estavam o Tengarrinha, o Pereira de Moura e o Lindley Cintra e outros companheiros. Ah!, o sabor da solidariedade e da camaradagem...
Este foi um episódio. Mas 1969 está cheio, como disse, de muitos outros que envolveram tanta gente. O arrepio das concepções e interesses pessoais de Mário Soares que os socialistas fizeram de 1969 a 1973 resulta destes factos e de um efectivo envolvimento de muitos socialistas nas causas da oposição democrática.
4. Do movimento estudantil para a CDE. Duas sedes e muito movimento…
Foi neste ambiente que também colaborei na CDE, como activista de base e sem puxar os pergaminhos de dirigente estudanil. Como referi atrás, meu irmão Luís tinha muito trabalho lá, ligado ao sectorial editorial, quer ao sector criativo com Ary dos Santos e outros ligados à Espiral (mas não só) quer à reprodução com o Ladislau Gouveia, irmão do saudoso José Gouveia, que integrava a lista de candidatos da CDE por Loures.
Antes estivera na pequena sede da rua do Calado, ali à Penha de França (ver foto publicada na imprensa de então). A sede era pequena para suportar tanta actividade. Muita gente lá entrava que nunca estivera ligado à oposição semi-legal. Dali, passamos a contar também com a sede do Campo Pequeno, ligada a uma vila que ainda existia há poucos anos, depois da sede ter sido destruída e dado lugar a escritórios. Era uma vivenda, com boas condições de trabalho. Dois pisos, um recuado para aparelho técnico que, por estar exposto (a PIDE fez várias investidas) levou a optar por várias outras tipografias. Lembro-me, por exemplo, da Gestetner perto da Av. do Brasil, e de outras em Alfama, na Rua do Alecrim e ainda outra no Bairro Alto. Mas também se recorria a escritórios de advogados do movimento para processar os stenceis electrónicos (Lopes de Almeida, Jorge Sampaio, Henrique Vareda, Vasconcelos Abreu, entre outros).
O ambiente na sede do Campo Pequeno também fervilhava de trabalho, de entradas e saídas, de múltiplas reuniões, de propaganda onde se notava as mãos de Ary dos Santos e de outros bons publicitários militantes (ver aqui alguns dos cartazes).
De Ary recordo nesse período de uma cena curiosa relacionada com o seu estilo muito próprio. Nos jardins do Campo Pequeno, a caminho da cervejaria, então existente na outra esquina do Campo Pequeno com a Av. da República, onde acabávamos as noitadas de trabalho, a zona estava recheada de pides e o Ary passou por um grupo de três e agachou-se como se estivesse a dar milho às galinhas (“pides, pides, pides…” dizia ele e gozávamos todos…).
A sede teve uma segurança nocturna a partir do momento em que a PIDE e legionários a quiseram vandalizar. Eram trabalhadores da Sorefame, da Carris, da CP, que me lembre. E também muitos jovens, estudantes e trabalhadores. O Nicolau Breyner, com um corpinho que metia respeito, fazia a ronda com dois enormes cães (também ele já foi candidato do CDS...). Para vencer o sono, cantava-se. Por lá passaram nessas noites o Adriano Correia de Oliveira, o José Manuel Osório, o Lopes de Almeida, bom advogado e bom guitarra, o Rui Mingas.
5. Ary dos Santos e o SARL
Do muito que gostaria de contar, meto mais esta.
Os comícios e sessões da CDE eram acompanhados pela polícia que impunha a sua presença. E acabavam mal com esta a intervir por os oradores não se cingirem ao que eles aceitavam. A guerra colonial, como o Tengarrinha refere, vinha no final das sessões pela sua própria boca e...as sessões acabavam.... Mas às vezes...
No Teatro Vasco Santana a sala está repleta. Candidatos na mesa serão os oradores. Mas eis que Ary avança com o seu conhecido poema "SARL". Di-lo, como calculamos. a subir da sua baixa estatura à estatura de um gigante. O Maltez Soares manda encerrar a sessão. O Ary sai do palco, dirige-se a ele e continua a dizer o poema em voz alta porque o som tinha sido cortado. O Maltez recua e grita "Se não saem, atiro para aí uma granada!...". Acabou por atirar a polícia de choque contra as pessoas à saída.
6. Uma oposição em mudança
Alguns teorizadores, que não viveram estes acontecimentos, e que se alimentam de opiniões de terceiros seleccionados a dedo e expurgados de alguma simpatia comunista, inventaram que algumas mudanças de cariz democrático no seio do próprio movimento CDE se teriam devido a correntes recém-chegadas à unidade democrática, contrariando a tutela comunista.... Isso não corresponde minimamente à verdade, com todo o respeito por estes últimos, importantes companheiros de uma luta comum e que contribuíram para recompor a diversidade política, tanto mais importante quanto Mário Soares decidira sair com a AS em importantes distritos.
O José Manuel Tengarrinha aborda também esta questão na citada entrevista. Relembrarei que, até então, um elemento que afectava a democracia interna do movimento. A questão da relação entre personalidades dirigentes e as bases do movimento.
Em 1969 esta questão, por iniciativa dos comunistas, começa a resolver-se através da criação da estrutura do movimento: comissões de freguesia, concelhias e distritais, comissões socioprofissionais por sectores de actividade e por grandes empresas. Por amplas discussões nas bases de ideias e documentos da estrutura dirigente que, também por isso, recolhe outra admiração e apoio. As guinadas ao nível dirigente passaram a carecer de compreensão e aceitação das bases.
Personalidades como Pereira de Moura, Tengarrinha ou Lindley Cintra inserem o seu reconhecido prestígio num trabalho que é colectivo e não lhes caem os parentes na lama... Personalidades como Mário Soares não tinham formação cultural e política para reproduzirem esta relação dialéctica. Mesmo quando Soares, muitos anos antes, representou o movimento juvenil na comissão central do MUD e criticou algumas das limitações desta, o que esteve em causa não foi essa relação dialéctica com o movimento, que não exercitou, mas a ambição pessoal de vir a ser um dia o grande dirigente da oposição.
Mário Soares não tinha qualidades nem estrutura intelectual para isso e falhou. Acabou por cumprir outros papéis.
Depois de 69, quase imediatamente e até o novo período "eleitoral" de 1973, as ilusões com Marcelo deixaram de ter peso significativo e durante esses quatro anos forjou-se no plano legal, semi-legal e clandestino essa nova forma de conceber o movimento de oposição: da base ao topo. Com grande representatividade regional e profissional, com uma representação de diferentes formas de expressão profissional, combinada com uma representação equilibrada de diferentes sensibilidades políticas que representavam formas de intervenção próprias. Nesses quatro anos deram-se saltos qualitativos notáveis: dos trabalhadores, criação da Intersindical, lutas estudantis e de variados meios culturais, no combate à guerra colonial. Na solidariedade com os presos políticos e com os movimentos de libertação e a criação do movimento democrático de mulheres. A criação do movimento dos capitães... Ao contrário do que alguns ousaram teorizar depois da revolução, esta não caiu do céu aos trambolhões...