1.
A esmola. O próprio vocábulo hoje incomoda. Tem travos de aviltamento, atraso e rebaixo. No século XXI, há quem queira voltar à prática infamante da esmola! As saudades da Idade-Média tardam ao esconjuro. Mas o lastro da miséria não é aura que eleve aos céus. É chumbo que arrasta para as regiões inferiores, onde, segundo as mitologias, se arde.
Vem-me primeiro à ideia o orador Rufino de «Os Maias». É o meu espírito faceto. Mas eu não consigo ser sempre faceto. A memória não deixa. Acode-me o mal-estar de miúdo quando um padre me levou num grupo a distribuir embrulhos por tugúrios de Alfama. Para que os meninos do liceu soubessem como vivia a pobreza, explicou. Eu não precisava que me lembrassem como vivia a pobreza. Sabia e sabia bem. Tinha brincado com miúdos rotos e descalços que usavam carrinhos feitos de arame como agora em África. Tinha entrado em casas de chão batido em que não havia nem uma cadeira. Tinha visto os pedintes chegarem aos grupos, esfarrapados, longas barbas, bornal ao ombro, por entre os arremessos dos cães, e ficarem depois às sobras debaixo dum chaparro. Tinha espreitado a guarda a cavalo, de chapéu colonial, a patrulhar os campos e a assegurar-se de que tudo estava em ordem: «Assine aí, lavradora!». Tudo estava em ordem. A ordem da miséria e da degradação. A ordem natural das coisas. Pobres sempre haveria. Porque sim. À cautela, aquelas «Mauser» em bandoleira eram garantes.
Isto vem, claro, a propósito da doutora Maria Isabel Jonet. E começou a ser escrito após uma senhora deputada ter entrado em guincharia num programa de televisão conduzido por uma daquelas figuras curvadas que nos vêm abrir uma porta rangente, de candelabro na mão, olho torvo e beiçola descaída, quando o nosso carro sem gasolina parou numa charneca desértica, entre nevoeiros, sem haver mais que uma mansão decrépita.
A deputada estridulou acusações contra «campanhas» e destemperou insultos. Mal defendida ficou a ré Isabel. Mal vista a parlamentar. Diminuídos todos. Suscitado este texto.
2.
Eu até nem desgosto especialmente da Doutora Jonet. E não se trata de nenhuma simpatia atávica pelos simples. Acho que é mais defeito meu: uma dificuldade em antipatizar, da natureza daquelas portas perras que, por mais que se tente, não fecham. Aliás, nomeio a pessoa apenas para que não interpretem a omissão como pejorativa.
A actividade caridosa dos ricos também não me causa, em si, especial contrariedade. Cuidar dos outros nunca fez mal a ninguém. Enquanto certa gente se entretém com a caridade não está a fazer coisas piores: intrigas, festarolas, ostentações, frioleiras, chazinhos. E, em certos casos, malfeitorias.
Vou passar de alto as últimas declarações da respeitável senhora. Dizem-me que se tem desdobrado em entrevistas. E mais insinuam: que não se trata de uma bem organizada manobra de influências, abusando de subalternidades nos jornais, mas de coisa pior: vontade pérfida, por parte da imprensa, de a surpreender, mais uma vez, em inconveniências. Eu nunca entraria nem num jogo, nem noutro. De maneira que recorro à minha memória, que é fraca, pedindo desde logo que me corrijam, se estiver equivocado:
-- Aqui há tempos, a um propósito que tinha a ver com a entreajuda na família, afirmou convictamente que os filhos deviam ajudar «a cortar a relva»;
- Noutra ocasião, referindo-se aos jovens dos seus relacionamentos disse, por palavras suas, que esses eram as «elites» que iriam estar à frente deste país.
-- Na véspera das últimas eleições legislativas (em pleno período de reflexão) convidada pelo espertíssimo Doutor Rebelo de Sousa que a olhava com o amarotado deleite de quem acaba de fazer batota na «vermelhinha», a senhora debitou, item a item, dogma a dogma, todo (mas todo) o papagueio da cartilha que tem vindo a desgraçar este país.
A «relva» ainda passa. É a consequência de se viver num mundo fechado. Mas sendo uma pessoa tão viajada… Não interessa. Já conheci gente que andou pelos sítios mais desvairados e não viu nada. Pode ir-se e voltar-se da Conchinchina setenta vezes sem sair de intramuros.
O considerar que certo tipo de jovens está destinado a governar é uma concepção classista, capciosa, e até ofensiva para a esmagadora maioria da juventude. Mas temos de reconhecer que há falhas de educação que nos acompanham toda a vida. O saisons, o chateaux…
Já fazer propaganda em dias de defeso é muito mais grave. Mas creio que podemos atribuir as culpas a quem a convidou para aquele programa, naquela precisa noite, sabendo de antemão que a senhora não poderia deixar de dizer as inanidades que lhe estão na massa do sangue. Com tal habilidade e torsão de manobra não admira que o Professor Rebelo de Sousa acabe, tanta vez, por se rasteirar a si próprio.
Surpreende-me é que as pessoas que, outro dia, se indignaram com a questão dos bifes e das torneiras (parece ter havido, entretanto, outra pérola sobre a temperatura do dueto solidariedade/caridade) não deram nem pelo corte da relva, nem pela vocação oligárquica, nem pela violação encapotada da lei eleitoral. Não se tratou de uma mera impertinência de uma senhora num tropeço de infelicidade. Por trás há um pensamento. Uma ideologia. E há muita gente (se calhar muitos dos vociferantes) que tem consentido nessa ideologia que faz passar por «normal» uma concepção do mundo arcaizante.
3.
No país em que eu nasci, quem mandava eram os ricos que encarregavam das tarefas sujas uns professores de Coimbra e uns militares que por sua vez comandavam legiões de desgraçados. Durante gerações, houve pessoas, em número mínimo, que beneficiaram duma vida remansosa dentro dum circuito fechado e protegido. A sua insensibilidade social era completa. Nem se apercebiam de que em volta havia pobre gente maltratada, humilhada, presa, espancada. Se lhe chegassem rumores (através das criadas, por exemplo) considerariam que era natural. O imperfeito mundo funcionava assim mesmo, éramos «um país pobre», resignassem-se. E até encontravam uma especificidade nacional justificativa do nosso fascismo doméstico. Era desumano? Paciência. Havia oratórios, terços, missas, e em calhando cilícios e bodos aos pobres. A desumanidade redimia-se nos ritos.
De repente (surpresa para eles) caiu-lhes uma revolução em cima, transtornou-lhe os planos, estremeceu-lhes as carreiras, desmarcou-lhes as festas. O que se chama, na sabedoria popular «uma patada no formigueiro».
Nunca perdoaram esses momentos – fugazes - de perturbação das pequenas vidas. Não tardariam, eles e seus descendentes, a ser repostos nos lugares de antes (em circunstâncias e conluios que não importa agora rever) mas num quadro jurídico e institucional diverso: a democracia. Essa incomodidade áspera, própria de intelectuais irrealistas, operários transviados e outros lunáticos, mostrava-se demasiado imponente para se derrubar de golpe? Dissimulasse-se. Corroesse-se por dentro. Desviassem-se os recursos do Estado. Praticasse-se uma permanente cleptofilia. E, dentada a dentada, sangria a sangria, desgaste a desgaste, chegou o momento que julgaram oportuno para rasgarem as fantasias e voltarem aos plenos poderes de antes, a coberto dos seus criados. A vingança serve-se fria. Há um nome francês que se usa no caso: «revanche».
É deste movimento que a doutora Maria Isabel Jonet tem sido uma porta-voz, no seu estilo muito próprio. E só agora muita gente nota. Porque vinha tudo no embalo duma quotidiana propaganda que dia a dia, linha a linha, imagem a imagem, inculcava nos espíritos o acatamento dum mundo de diferenças e de desigualdades. O mundo em que a doutora Jonet – e outras pessoas do mesmo entendimento – se sentem realizadas.
Quando por todo o lado se apregoa – com grande favor jornalístico – a ideia de que o Engº Zulmiro não deve pagar o mesmo nos transportes que um reformado pobre, quando se dispõem contrapartidas distintas, conforme os escalões, nos cuidados de saúde, quando se estabelecem diferenças de tratamento ao sabor dos rendimentos declarados não é a justiça que estão a praticar. Muito ao contrário. É a normalização e a institucionalização das desigualdades. É um desenho do mundo em que a pobreza (a dos outros) se aceita como fatalidade. A restauração do despenhado mundo dos pobres, como eu o conheci.
Os ricos já têm o poder económico neste país. Asseguraram, através dos seus valetes, o poder político; ainda querem mais: exercer o poder pessoal, sobre as vidas de cada um, usando, ou sendo transmissários, do instrumento da esmola. É a imposição da desigualdade como ordem natural das coisas, como uma grelha implacável cravada na sociedade portuguesa. A esmola, neste quadro, faz lembrar o cajado do guardador de rebanhos. Pobres para serem mandados, distribuídos, orquestrados, mordidos, concentrados, castigados, benzidos.
E isso é bem diferente de praticar a caridade, nas falhas e interstícios do chamado Estado social. Não há aqui expressão de amor ao próximo. Não se trata dos casos (meritórios) em que se descarregam consciências, sem que uma mão saiba o que faz a outra. É, ao contrário, uma fórmula institucional de violência. Esse mal, sistémico e obsidiante, não se deixa compensar com os maquinismos do bem-fazer de uma indústria caridosa. Por um lado fabricam-se pobres, através dum sistema social iníquo. Por outro lado, esmolam-se os pobres que se criaram. É repulsivo? É, sim, e estão em campo as mesmas famílias (descendentes ou afins) praticantes dos bodos dos tempos do fascismo.
4.
Falemos agora de decência. É um conceito que não tem que ver com o sapatinho de vela no verão, o esgoleiramento da camisinha branca ao fim-de-semana, os gestos miúdos do chazinho ou a mãozinha no volante do Porshe, nem com os objectos «de marca» que irmanam paradoxalmente os extremos do espectro social. Vadios de cima e vadios de baixo (Eça confrontava-os no Chiado) entusiasmam-se pelos mesmos efeitos. Apuradas as razões, hão-de encontrar-se num subterrâneo fio de ligação, mais ou menos disfarçado: frivolidade iletrada. Aos de cima, chamou a doutora Isabel Jonet «elite», por manifesto equívoco. Como se no país não existissem cientistas, arquitectos, engenheiros, artistas, professores, médicos, advogados, e tudo tivesse que rasar-se pela bitola de alguns economistas, banqueiros, «gestores» e ociosos.
Um dos preceitos estruturantes que escora o nosso ordenamento jurídico e funda a confiança nos comportamentos eticamente regulados vem do direito romano e das ancestrais práticas de boa-fé e exprime-se no brocardo: «pacta sunt servanda», ou seja, os compromissos são para se cumprirem. E sobre isto não há expedientes de contabilistas, não há casuísticas habilidosas, não há reservas mentais, não há passes de futebolista atendíveis. Há uma obrigação? Cumpra-se.
Mas a plutocracia que tem mandado nos destinos dos portugueses transportou para o Estado os seus pequenos hábitos de manobrismo, de expedientes, habilidades, truques, quando não de falcatrua, que retiraram à entidade a sua natureza de «pessoa de Bem». Ser «de bem» é uma noção que está fora do alcance de quem apenas acha meritórios o lucro e as negociatas. Coisa abstracta e «intelectual», própria de «otários» para utilizar a linguagem das cadeias que acaba por não ser muito diferente, numa perspectiva de extremos tangenciais
É assim que vemos governantes a colocarem o Estado Português na situação de violar os compromissos tomados para com os seus trabalhadores e aposentados. A ignorar prazos contratuais. A incumprir as promessas juradas perante o seu eleitorado. A fazer negaças às própria constituição. De modo tão flagrante e provocatório que lhes fez perder a legitimidade formal que detinham à partida.
Ora quem se coloca fora da lei está a pedir um tratamento fora da lei. Mas eles não estão apenas a pedir pedradas. Estão a pedir o confisco dos seus relvados, dos seus automóveis, das suas casas, das suas piscinas, dos seus valores mobiliários, dos seus quadros, dos seus cavalos, das suas jóias e luxos e a supressão de todas as mordomias. Não que isso seja economicamente relevante. Mas significa a reposição de um mínimo de decoro.
Ser-lhes-á então tarde para perceber que numa situação de ruptura a própria polícia mudará de campo. Certos jornalistas descobrirão escrúpulos éticos insuspeitados. Economistas e contabilistas virão dizer que foram mal interpretados e nunca proferiram aquelas coisas. Irromperão múltiplos vira-casacas e desertores da tirania de mercado, dispostos a pisar a livralhada de Milton Friedman e a cuspir no retrato emoldurado da Senhora Thatcher.
E lá terão as pessoas de bom senso de arriscar a reputação e a pele para evitar que se maltratem umas dúzias de plutocratas amedrontados e seus serviçais de fatinho, rojados pelo chão, de folha de cálculo à mostra.